Julio Gonçalves

Todo filme ou série necessita de um roteiro “bem” escrito, que se traduz no sucesso ou fracasso das cenas, do mesmo modo, avaliações e intervenções psicológicas efetivas são desenvolvidas a partir de uma “boa” Formulação de Caso.

Faz um experimento mental comigo e pense em qualquer cena de filme ou série de sua preferência. Os atores desse teu filme têm várias atividades e funções que precisam executar ao longo das gravações das cenas, desde decorarem suas falas, modularem suas presenças em níveis corporais, faciais, e, até mesmo, no controle da expressão de suas emoções, para que, assim, as cenas retratem realmente a intensidade emocional e real que se deseja com aquele personagem.

Mas, para os atores decorarem suas falas, são necessárias as próprias falas, organizadas inteligentemente para dar sentido às cenas. É preciso uma sequência lógica e temporal, para que o senso de realidade seja atingido ao longo do filme/série.

São primordiais alguns conhecimentos técnicos de presença corporal, facial e orientação espacial com base nas disposições das câmeras e luz para as cenas. Atmosferas propícias são essenciais para que as emoções desses atores sejam expressas de forma genuínas e verdadeiras. 

E tudo isso é possível devido ao quê? Adivinhem? Um roteiro bem organizado, que contemple o início, o meio e o fim desse filme/série. Um roteiro que contemple “o todo”.

Para e pensa, como seria o Game of Thrones sem um roteiro? Consegue imaginar a confusão entre os atores sem saber o que fazer ou com quem interagir em cena? O que seria da atuação desses atores ao interpretarem os personagens? Imagine a Daenerys com cara de confusão sobre o que fazer e falar?

No nível de prática clínica, isso tem relação com o fato de formularmos ou não os casos dos nossos pacientes. Se tu não realizas uma Formulação de Caso, tenho para te dizer que tuas cenas estão sem roteiro e isso pode atrapalhar muito a qualidade do teu “filme/série”.

Sabe aquela expressão clássica de que “teu filme tá queimado com o fulano(a)”? Pois é, mais ou menos isso, mas no teu caso, o filme pode estar queimado contigo mesmo, no sentido de que as crenças como “não sou competente como profissional” são reforçados pelo comportamento de não realizar a Formulação de Caso

Mas fica tranquilo, quando descobrimos nossas lacunas como profissional (e acredite, todos as possuem!) temos a oportunidade de alterar o curso do nosso comportamento. Eis a chance na sua frente, a partir de agora.

Voltando ao assunto da Formulação de Caso, na prática clínica, essas habilidades (decorar falas, modular comportamentos em cena e expressar emoções nas cenas dos filmes) são nossas capacidades de acolher, avaliar e intervir junto ao nosso paciente. Contudo, o que avaliar? Que instrumentos utilizar? Como delimitar os objetivos psicoterápicos? Quais valores do paciente? Sua personalidade diz alguma coisa sobre suas demandas? Quais estratégias psicológicas devo aplicar primeiro? 

Essas respostas são facilmente adquiridas quando organizadas a partir da Formulação de Caso.

Um motivo muito comum que endossa a falta de uso da Formulação de Caso na prática clínica, é achar que todas as informações serão registradas pela memória. Não acredite nessa grande falácia, pois já temos muitos estudos evidenciando justamente o contrário (Oliveira, Albuquerque & Saraiva, 2018; Schacter, 2003; Viana, 2018). 

Se quisermos manter práticas psicoterápicas eficazes, precisamos formular casos ao vivo e a cores, seja no caderno ou no word. Com qualquer paciente que nos relacionamos no nível clínico, é preciso de um guia, saber onde ele quer ir, onde nós mesmos queremos chegar e como faremos isso.

Não basta só o ouvir, aplicar alguma técnica e pronto, fim de sessão. Daí na outra sessão, novamente, só o ouvir, aplicar alguma técnica e pronto, fim de sessão. Isso é uma falta ética quando se trata de Psicoterapia Baseada em Evidências (Daniel, Ioana & Stefan, 2018). 

Fazer isso nos afasta de um “olhar para o todo”, e, simplesmente, só serve para apagar incêndios. E não é isso que queremos, não é? Queremos que nosso paciente alcance independência pessoal, inteligência emocional e que saiba tomar decisões de forma autônoma e saudável, e que, depois de tudo isso, o possamos vê-lo satisfeito, vivendo com base nos seus valores.

Esse guia nada mais é do que a Formulação de Caso. E, na prática, que bicho é esse? Bom, com base em Eells (2022) e Nicoletti, Donadon & Portela (2022), podemos conceituar da seguinte forma

“Formulação de Caso é um processo ativo que integra teoria, pesquisa e intervenções de um modelo psicoterapêutico, permitindo a descrição dos problemas do paciente, seu funcionamento psicológico, comportamental e sociais atuais, bem como o desenvolvimento de teorias sobre o que predispõe, precipita e mantém tais padrões, visando orientar o plano de tratamento“.

De modo prático, a Formulação de Caso é um instrumento composto por diversas “partes”. Cada uma dessas partes nos permite observar e descrever especificamente o “modus operandi” atual do paciente, para que assim possamos relacionar esse funcionamento com a teoria e pesquisa em Terapia Cognitivo Comportamental e delinear o melhor tratamento possível.

Gosto de exemplos práticos, então, na próxima página, dá um confere na Formulação de Caso da Cristina (nome fictício).

Cristina me procurou relatando uma tristeza constante, com bastante agitação motora, preocupada com seu desempenho no trabalho e sofrendo pelo término no relacionamento. Relatou que sempre lidou bem com cobranças, mas que nos últimos meses tem tido dificuldades em ouvir correções sobre suas atividades laborais, o que a tem feito procrastinar excessivamente (olha o limiar de tolerância aqui!).

Foi promovida para o cargo de gerente de uma instituição financeira, algo que sempre sonhou, mas que “não me deixou feliz como eu gostaria”. Para alcançar a promoção, Cristina trabalhou muito e esse excesso de trabalho lhe custou um namoro, que terminou na mesma semana em que foi promovida.

Diz que “sempre tive tendência ao pessimismo”, e tais sentimentos têm surgido diariamente, de modo que “até andar de bicicleta, sendo algo que gosto, deixei de fazer”. A Cristina tem um padrão de personalidade marcada por um alto neuroticismo, explicando a tendência ao pessimismo e ao nervosismo. O padrão de personalidade somada à história desenvolvimental (convulsões, abandono pelo pai, bullying, etc.) consentiu que crenças como “sou uma pessoa deprimida, sozinha e pessimista” se desenvolvessem.

Mesmo assim, ao longo da vida ela criou estratégias funcionais que não deixaram as crenças nucleares se ativarem ao ponto de atrapalharem seu percurso e conquistas profissionais. Esse percurso sempre foi regido por muito trabalho e perfeccionismo, mantido por regras de que “se não for para entregar algo bem feito, então nem entrego”, com condições rígidas de funcionamento como “se eu não trabalhar muito, o futuro será infeliz e um fracasso”.

O maior problema é que o foco excessivo no trabalho a fez negligenciar várias outras áreas importantes da vida, como o relacionamento. Para piorar, a estratégia compensatória de “trabalhar muito” gerou ao longo do tempo uma alta predição da recompensa que não foi suprida com a promoção (bastante dinheiro, mas as responsabilidades aumentaram).

A insatisfação com a nova promoção, somada ao término da relação (gatilhos), fizeram com que todas as crenças nucleares de Cristina se ativassem de uma vez só: “sou sozinha”, “sou depressiva”, “não adianta fazer nada, pois meu futuro vai ser um fracasso”

Essas crenças fortemente ativadas, por si só, têm reforçado fortemente a desregulação emocional (despersonalização e desrealização) e comportamentos de fuga (ideação suicida, passividade). Em resumo, o “modus operandi” da Cristina é:

Conhecer esse ciclo de funcionamento da Cristina me permitiu descrever, explicar e selecionar as estratégias mais coerentes e eficazes para compor o plano de tratamento e reduzir o sofrimento da Cristina. 

Viu, que prático? É a Formulação de Caso que nos permite realizar essas relações causais e correlacionais das demandas do paciente, com suas crenças, com seus comportamentos, com sua história de vida e, por fim, dar um sentido ao sofrimento psicológico do paciente. A partir daí, o Plano de Tratamento se torna muito mais fácil de ser delineado!

De forma indiscutível, uma Formulação de Caso bem feita é sinônimo de um tratamento psicológico eficaz. Para além de um guia, ela envolve um raciocínio clínico assentado em bases teóricas robustas, que visam entender, integrar e formular as demandas atuais dos pacientes com base na sua personalidade, história desenvolvimental e de aprendizagem, sintomas, traumas, crenças nucleares, comportamentos, emoções, etc. 

Quer um modelo de Formulação de Caso? Só baixar aqui

Para complementar esse modelo e entender por onde começar, o texto “4 etapas essenciais da Formulação de Caso” vai te ajudar muito! Ah, vou deixar uma aula sobre FC na TCC, também!

Daniel, D., Ioana, C., & Stefan, H. (2018). Why Cognitive Behavioral Therapy Is the Current Gold Standard of Psychotherapy. Frontiers in Psychiatry, 9. Disponível em: https://bit.ly/3It7HbI

Dobson, D., & Dobson, K. (2011). A Terapia Cognitivo-Comportamental baseada em evidências. Porto Alegre: Artes Médicas do Sul.

Willem, K., Padesky, C. A., & Dudley, R. (2010). Conceitualização de Casos Colaborativa: o trabalho em equipe com pacientes em Terapia Cognitivo-Comportamental. Porto Alegre: Artes Médicas do Sul.

Nicoletti, E. A., Donadon, M. F. & Portela, C. (2022). Guia prático de Formulação de Caso em Terapia Cognitivo Comportamental. Porto Alegre: Sinopsys.