
Escrito por Júlio Gonçalves
A prática clínica contemporânea tem enfrentado o desafio de tratar pacientes cujas queixas não se encaixam perfeitamente nos manuais diagnósticos tradicionais. A elevada taxa de comorbidade, a variabilidade na apresentação de sintomas e a complexidade das experiências humanas demandam abordagens mais flexíveis, personalizadas e empiricamente fundamentadas. Nesse contexto, a formulação de caso transdiagnóstica se apresenta como uma proposta robusta e inovadora que visa compreender e intervir nos mecanismos comuns que atravessam diferentes transtornos mentais.
Frank e Davidson (2014), em The Transdiagnostic Road Map to Case Formulation and Treatment Planning, propõem uma metodologia clínica que parte do princípio de que os transtornos psicológicos compartilham mecanismos subjacentes que podem e devem ser o foco do tratamento. Esta abordagem rompe com os limites da nosologia categorial do DSM, priorizando uma perspectiva dimensional e funcional dos processos psicopatológicos.
Fundamentos Epistemológicos e Teóricos
A formulação transdiagnóstica de caso é fortemente ancorada em três pilares principais:
-
Ciência psicológica baseada em mecanismos: Foca na identificação de processos psicológicos empiricamente validados (por exemplo, evitação experiencial, ruminação, intolerância à incerteza) que mantêm o sofrimento psíquico.
-
Flexibilidade funcional e teórica: Permite ao terapeuta integrar diferentes abordagens baseadas em evidências (CBT, ACT, DBT, etc.), desde que os componentes sejam selecionados de maneira lógica e funcional para o caso.
-
Individualização e monitoramento contínuo: Prioriza a formulação clínica individual, construída colaborativamente com o paciente, e revisada à medida que o tratamento evolui e os dados clínicos se acumulam.
Estrutura da Formulação Transdiagnóstica
A proposta de Frank e Davidson se organiza em um processo dinâmico que parte da avaliação inicial e se estende até a finalização do tratamento. Esse percurso pode ser representado por um “mapa rodoviário” com os seguintes marcos:
1. Avaliação e Hipóteses Diagnósticas
O processo começa com a coleta de dados clínicos e psicométricos. Diferente de avaliações centradas apenas no diagnóstico categorial, a formulação transdiagnóstica investiga:
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Situações disparadoras e padrões contextuais.
-
Exemplos específicos dos comportamentos-problema.
-
História de aprendizagem, eventos de vida, funcionamento familiar e cultural.
-
Padrões emocionais, cognitivos e comportamentais associados ao sofrimento.
Essa avaliação culmina na formulação de hipóteses sobre os Mecanismos Transdiagnósticos (TDMs) que estão em operação.
Identificação de Mecanismos Transdiagnósticos (TDMs)
Os TDMs são classificados em duas categorias centrais:
a. Mecanismos de Vulnerabilidade
São predisposições que aumentam a sensibilidade do indivíduo ao sofrimento emocional. Incluem:
-
Déficits neuropsicológicos (regulação emocional, funcionamento executivo).
-
Esquemas cognitivos negativos (ex.: “sou um fracasso”).
-
Crenças metacognitivas disfuncionais.
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Perfeccionismo, intolerância à incerteza, sensibilidade à ansiedade, medo de avaliação negativa.
b. Mecanismos de Resposta
Referem-se aos padrões disfuncionais que os indivíduos desenvolvem para lidar com seus sintomas. Incluem:
-
Evitação comportamental e cognitiva.
-
Ruminação, worry, supressão de pensamentos.
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Reações emocionais automáticas (autoacusação, culpa, vergonha).
-
Comportamentos de segurança, compulsões, retraimento social.
A combinação desses dois eixos forma um ciclo que retroalimenta o sofrimento do paciente. A hipótese clínica é construída com base na interação desses mecanismos e é formulada em termos testáveis e observáveis.
Construção Colaborativa da Formulação
O terapeuta compartilha com o paciente sua compreensão dos mecanismos identificados, utilizando linguagem acessível e ferramentas visuais, como diagramas ou esquemas. Essa construção colaborativa permite:
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Validação do modelo.
-
Maior aderência e engajamento do paciente.
-
Direcionamento claro para definição de metas terapêuticas.
Estabelecimento de Metas Terapêuticas
As metas são divididas em dois níveis:
-
Metas globais de resultado: relacionadas à melhoria da funcionalidade e da qualidade de vida.
-
Metas de mudança de mecanismos: indicam os processos específicos que precisam ser modificados (ex.: aumentar tolerância à incerteza, reduzir evitamento emocional).
Essas metas são operacionalizadas com indicadores mensuráveis (frequência, intensidade, duração de comportamentos, uso de escalas padronizadas etc.).
Seleção e Planejamento de Intervenções
Com base na formulação dos mecanismos, o terapeuta escolhe intervenções específicas que visam diretamente os TDMs envolvidos. Por exemplo:
TDM Identificado | Intervenção Indicada |
---|---|
Intolerância à incerteza | Exposição a situações ambíguas + reestruturação cognitiva |
Ruminação | Treinamento de atenção + resolução de problemas |
Perfeccionismo autoimposto | Experimentos comportamentais + flexibilização de metas |
Evitação experiencial | Aceitação e mindfulness (ACT, DBT) |
O plano terapêutico é flexível e adaptável, com espaço para experimentação e ajustes contínuos.
Monitoramento e Reavaliação
A cada sessão, o progresso é monitorado em três níveis:
-
Redução de sintomas.
-
Alterações nos mecanismos formulados.
-
Evolução nas metas funcionais.
O terapeuta utiliza feedback contínuo, escalas, registros e observações clínicas para ajustar a formulação e as intervenções. Quando necessário, novos TDMs podem ser incluídos ou antigos, descartados.
Aplicações Práticas e Vantagens
A formulação transdiagnóstica se mostra eficaz principalmente em:
-
Casos complexos e comórbidos (ex.: depressão + TOC + ansiedade social).
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Pacientes com histórico de fracasso terapêutico por protocolos rígidos.
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Quadros de difícil categorização nos moldes tradicionais.
Suas principais vantagens incluem:
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Personalização profunda do tratamento.
-
Clareza na definição de alvos terapêuticos.
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Maior agilidade na resposta clínica.
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Integração com modelos baseados em processos (como a Terapia Baseada em Processos e a Terapia Contextual).
Discussão e Limitações
Embora promissora, a formulação transdiagnóstica exige alto grau de formação técnica e supervisão clínica. Requer:
-
Capacidade de raciocínio clínico sofisticado.
-
Conhecimento atualizado dos mecanismos empiricamente validados.
-
Acesso a instrumentos de avaliação específicos e sensibilidade para construir alianças colaborativas.
Além disso, é um modelo ainda em consolidação, que demanda mais pesquisas sobre a eficácia comparada de intervenções dirigidas a mecanismos versus transtornos.
Conclusão
A formulação de caso transdiagnóstica proposta por Frank e Davidson representa um avanço importante na prática clínica baseada em evidências. Ao deslocar o foco dos rótulos diagnósticos para os processos psicológicos centrais, o modelo oferece uma via potente, ética e eficaz de compreensão e intervenção clínica. Combinando ciência, pragmatismo e sensibilidade à singularidade de cada paciente, essa abordagem convida os clínicos a adotarem um novo mapa para navegar o território da psicopatologia: um mapa guiado por mecanismos, não por rótulos.
Um modelo editável de formulação transdiagnóstica pode ser baixada aqui.

Júlio Gonçalves
Psicólogo e Supervisor
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