Julio Gonçalves

Na sua frente, sentada confortavelmente em uma cadeira, com as mãos cruzadas, as costas retas e os pés apoiados no chão, está uma jovem paciente de 19 anos.

Inesperadamente você observa uma ligeira mudança em como ela segura seu corpo, seu rosto suaviza quase imperceptivelmente e a voz soa diferente, em um tom um pouquinho mais alto do que o normal, com uma nova qualidade mais “cantante”. O que acharia dessa experiência? O que faria?

Bom, foi isso que a psicoterapeuta e antropóloga Rebecca Lester, da Washington University, em Saint Louis, vivenciou por meio de sua experiência clínica com uma paciente chamada Ella, com diagnóstico de Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI).

Ella procurou psicoterapia quando estava enfrentando sintomas associados ao Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT), tais como revivescência, pesadelos recorrentes, disfunções somáticas, autolesão, etc. Esses sintomas eram uma resposta direta a um histórico de abuso grave que Ella vivenciou na infância.

Em conjunto com esses sintomas, Ella apresentava períodos de confusão, perda da noção de tempo e envolvimento em interações sociais que não lembrava, assim como outros sinais bem relevantes e inexplicáveis, como:

  • Acordar vestindo roupas diferentes
  • Pedaços de papel com escritas infantis
  • Desenhos de bonequinhos, animais e arco-íris
  • E-mails enviados com mensagens estranhas
  • Móveis movidos no quarto

Ficou claro que Ella tinha TDI, uma condição clínica na qual uma pessoa tem duas ou mais personalidades distintas que regularmente assumem o controle do comportamento da pessoa, bem como períodos recorrentes de amnésia.

Conhecido como personalidades múltiplas, o TDI e seus critérios estão listados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR):

  1. Pacientes têm ≥ 2 estados de personalidade ou identidades (perturbação da identidade), com descontinuidade substancial no sentido que têm sobre o self e sensação de controle das ações.
  2. Os pacientes têm lacunas na memória para eventos diários, informações pessoais importantes e eventos traumáticos—informações que tipicamente não se perderiam com o esquecimento normal.
  3. Os sintomas causam sofrimento significativo ou prejudicam muito o funcionamento social, ou ocupacional.
  4. Além disso, os sintomas podem não ser mais bem explicados por outro transtorno (p. ex., crises parciais complexas, transtorno bipolar, transtorno de estresse pós-traumático, outro transtorno dissociativo), pelos efeitos da intoxicação alcoólica, por práticas culturais ou religiosas amplamente aceitas, ou, em crianças, por fantasias (p. ex., um amigo imaginário).

Ella manifestou 12 personalidades diferentes (ou “partes”, como ela as chamava) com idades entre dois e 16 anos. Cada parte tinha um nome diferente, suas próprias memórias e experiências e padrões distintos de fala, maneirismos e caligrafia.

Alguns se comunicavam por palavras, outros ficavam em silêncio, transmitindo coisas por meio de desenhos ou usando bichos de pelúcia para encenar cenas. Na maioria das vezes, as diferentes partes não estavam cientes do que estava acontecendo quando outra parte estava “fora”, criando uma existência fragmentada e confusa.

Um desenho colorido de criança mostrando um grupo de pessoas de mãos dadas sob um arco-íris.

Violet, sete anos e uma das personalidades de Ella, desenhou esta imagem de todas as “partes” de mãos dadas, com a terapeuta Rebecca J. Lester no centro. Crédito: Ella.

Tradicionalmente, as pessoas com TDI são tratadas a partir do objetivo de “integrá-las”: reunindo as partes fragmentadas em um “eu” central. A parte mais interessante desse caso é como psicoterapeuta delineou o tratamento, totalmente diferente do convencional.

Conforme relatado por Rebecca, essa ainda é a abordagem mais comum e reflete uma visão ocidental do mundo em que um corpo pode ter apenas uma identidade.

A partir de sua formação em Antropologia, Rebecca abordou os sintomas de TDI concebendo suas personalidades como uma comunidade — disfuncional naquele momento, mas ainda assim uma comunidade. Sua preocupação era menos com o número de “eus” que ela tinha, mas sim com a forma com que eles trabalhavam juntos — ou não — em sua vida diária.

Foi um tratamento longo, com três sessões por semana, e mais detalhes podem ser vistos aqui. Mas, de modo geral, a estratégia mais utilizada foi aumentar a comunicação entre as partes de Ella, como manter um caderno aonde cada parte pudesse anotar o que fazia enquanto estava fora, para que os outros soubessem o que esperar quando estivessem no comando. 

Com o passar do tempo, as partes às vezes escreviam e-mails umas para as outras (e copiavam Rebecca). Ella e suas partes tinham “reuniões de equipe”, onde se reuniram em um espaço de reunião que ela criou em sua mente – uma sala de estar com sofás coloridos, almofadas e brinquedos para as partes mais jovens.

Nem tudo foi compartilhado entre as partes (p. ex. memórias abusivas de algumas das partes), mas os “eus” de Ella aprenderam aos poucos a trabalhar como uma equipe de especialistas. 

Um era bom em fazer testes, outro se sentia à vontade ao falar com figuras de autoridade, outro se sentia confortável com apego emocional e outro se sentia magoado, mas acabou começando a chorar baixinho ao fundo, em vez de assumir o controle e impossibilitar o funcionamento de Ella, etc.

Uma história forte, não acha? Nas palavras de Rebecca:

 

“Ella é uma daquelas clientes cuja presença permanece mesmo muito tempo após o término da terapia, e continuo refletindo sobre o que aprendi. Ella me incentivou a compartilhar sua história na esperança de que possa ajudar outras pessoas a entender as realidades do TDI e as possibilidades de encontrar caminhos a seguir, mesmo quando o caminho não é bem trilhado”.

Lester, R. (2023). The Community of Ella” em Scientific American 328, 6, 36-43. https://www.scientificamerican.com/article/a-traumatized-woman-with-multiple-personalities-gets-better-as-her-parts-work-as-a-team/

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