Afinal, o que é o modelo transdiagnóstico?

Escrito por Júlio Gonçalves

Na psicologia clínica, os sistemas classificatórios como o DSM-5 (American Psychiatric Association, 2022) e o CID-11 (World Health Organization, 2018) propõem categorias diagnósticas distintas para transtornos mentais como o transtorno de ansiedade generalizada, o transtorno obsessivo-compulsivo, a fobia social, entre outros. Essa abordagem parte da premissa de que cada transtorno possui causas, manifestações e tratamentos únicos. No entanto, evidências acumuladas têm desafiado essa visão, mostrando que há mais semelhanças do que diferenças entre os transtornos — tanto em seus processos subjacentes quanto nas intervenções.

Esse reconhecimento levou ao desenvolvimento do modelo transdiagnóstico, que propõe uma forma alternativa de compreender e tratar os transtornos mentais, com base em processos psicológicos comuns a diversas condições. Em vez de focar apenas no diagnóstico, esse modelo enfatiza os mecanismos de manutenção dos sintomas — como a evitação, a intolerância à incerteza ou a superestimação de ameaça — que aparecem com frequência em múltiplos quadros clínicos.

 

O que é o modelo transdiagnóstico?

A abordagem transdiagnóstica propõe que muitos dos chamados “transtornos” compartilham fatores cognitivos, emocionais e comportamentais centrais, os quais sustentam e amplificam o sofrimento. Esses processos, frequentemente mediados por esquemas cognitivos, evitamento experiencial e padrões de pensamento disfuncionais, são considerados mais relevantes do que o diagnóstico específico para fins terapêuticos.

Segundo Abramowitz e Blakey (2020), os diagnósticos formais têm utilidade nos ensaios clínicos e na comunicação entre profissionais, mas não refletem adequadamente a complexidade das apresentações clínicas do mundo real. A comorbidade elevada, os casos subclínicos e as variações individuais reforçam a necessidade de um olhar baseado em processos.

 

Por que adotar uma abordagem transdiagnóstica?

  1. Redundância entre os transtornos: Diversas condições compartilham mecanismos centrais, como evitação, fusão cognitiva e cognições disfuncionais sobre ameaça.

  2. Tratamentos semelhantes: As técnicas terapêuticas eficazes — como exposição, reestruturação cognitiva, aceitação, entre outras — são utilizadas em múltiplos transtornos.

  3. Flexibilidade clínica: O modelo permite que os clínicos compreendam o sofrimento de forma mais funcional, indo além de etiquetas diagnósticas e adaptando intervenções à singularidade do paciente.

  4. Melhor correspondência com a realidade clínica: A maioria dos pacientes não se encaixa perfeitamente em um único diagnóstico. O modelo transdiagnóstico permite uma formulação mais abrangente e precisa.

 

Principais processos transdiagnósticos

O Clinical Handbook of Fear and Anxiety apresenta os seguintes processos de manutenção da ansiedade e medo como fundamentais e recorrentes:

1. Superestimação da Ameaça

Consiste em exagerar:

  • A probabilidade de que algo ruim aconteça;

  • A gravidade das possíveis consequências.

Exemplo: “Se eu falar em público, vou gaguejar, todo mundo vai rir, e serei demitido.”
Presente em fobias, TOC, ansiedade social e transtornos somáticos.

2. Sensibilidade à Ansiedade

É o medo dos próprios sintomas físicos de ansiedade, como:

  • Batimentos cardíacos acelerados;

  • Tontura ou falta de ar.

A pessoa interpreta esses sintomas como perigosos ou incontroláveis, levando a hipervigilância e aumento do desconforto. Prevalente no transtorno de pânico e em outras formas de ansiedade intensa.

3. Evitação Experiencial

Refere-se à tentativa de escapar ou suprimir experiências internas negativas (emoções, sensações, pensamentos).
Apesar de oferecer alívio momentâneo, impede o aprendizado corretivo, perpetuando os sintomas.
Comum em TOC, TEPT, TAG e depressão.

4. Intolerância à Incerteza

Caracteriza-se por:

  • Mal-estar diante de situações ambíguas;

  • Busca compulsiva por controle e previsibilidade;

  • Incapacidade de aceitar “não saber”.

É um dos pilares do TAG, mas também aparece no TOC (verificações), na ansiedade social e em fobias.

5. Perfeccionismo Maladaptativo

Implica padrões elevados e inflexíveis, com:

  • Autocrítica severa;

  • Medo de falhar ou errar;

  • Pensamento dicotômico (8 ou 80).

Alimenta evitação, procrastinação e sofrimento crônico. Está presente em transtornos de ansiedade, depressão e transtornos alimentares.

6. Ruminação e Preocupação Excessiva

  • Ruminação: foco repetitivo em falhas passadas (“por que eu fiz aquilo?”);

  • Preocupação: cenários futuros catastróficos (“e se algo der errado?”).

Esses pensamentos, longe de ajudar, intensificam o sofrimento e mantêm o ciclo ansioso. Centrais no TAG, depressão e TEPT.

7. Metacognição Desadaptativa

São crenças disfuncionais sobre os próprios pensamentos, como:

  • “Se eu penso em algo ruim, é porque sou uma má pessoa”;

  • “Se não controlar meus pensamentos, algo horrível vai acontecer”.

Comum no TOC, leva à fusão pensamento-ação, rituais mentais e evitação.

 

O modelo transdiagnóstico representa uma evolução na forma de entender os transtornos mentais. Ele convida profissionais e pesquisadores a se afastarem das categorias rígidas e a se aproximarem da funcionalidade dos processos psicológicos que sustentam o sofrimento humano. A intervenção passa a ser centrada na modificação de padrões disfuncionais que transcendem diagnósticos, como evitar sentimentos, interpretar erroneamente sensações corporais ou buscar controle absoluto diante da incerteza.

Ao adotar essa perspectiva, o clínico desenvolve uma compreensão mais flexível, precisa e eficaz do sofrimento psíquico, aumentando a responsividade do tratamento e a autonomia do paciente.

Abramowitz, J. S., & Blakey, S. M. (Eds.). (2020). Clinical handbook of fear and anxiety: Maintenance processes and treatment mechanisms. American Psychological Association. https://doi.org/10.1037/0000150-000

American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). American Psychiatric Publishing.

Barlow, D. H., Sauer-Zavala, S., Carl, J. R., Bullis, J. R., & Ellard, K. K. (2014). The nature, diagnosis, and treatment of neuroticism: Back to the future. Clinical Psychological Science, 2(3), 344–365. https://doi.org/10.1177/2167702613505532

Harvey, A. G., Watkins, E., Mansell, W., & Shafran, R. (2004). Cognitive behavioural processes across psychological disorders: A transdiagnostic approach to research and treatment. Oxford University Press.

Sauer-Zavala, S., Cassiello-Robbins, C. F., & Wilner, J. G. (2021). Transdiagnostic treatment: Targeting the core processes underlying emotional disorders. Psychiatric Clinics of North America, 44(4), 529–546. https://doi.org/10.1016/j.psc.2021.08.002

World Health Organization. (2018). International classification of diseases for mortality and morbidity statistics (11th Revision). https://icd.who.int/

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