Uma memória minha (Júlio), recente e real: num sábado, sentado no escritório, café do lado e montando os slides de uma aula de psicopatologia. Na página 1 do slide, coloquei o título da aula, meu nome… No momento que começo digitar minha titulação “Mestre em Psicologia…”, uma onda de vergonha e desânimo toma conta de mim ao pensar que os outros professores já tem doutorado e eu, ainda, um “reles” mestre. Os pensamentos inundam minha cabeça: “errei na vida”, “era pra ter começado antes na faculdade”, “não era pra ter perdido tempo”, “nem sirvo pra estar no meio deles”. E esse elevado padrão que desenvolvi ao longo da vida (pra quase tudo que faço) tem nome e sobrenome: Perfeccionismo!
O perfeccionismo pode ser definido como um traço de personalidade que envolve a busca constante pela excelência, a atenção meticulosa aos detalhes e um forte desejo de evitar erros ou imperfeições. É uma característica complexa e multidimensional, influenciada por fatores genéticos, ambientais e psicológicos.
Esse traço não é completamente ruim, como pode soar na situação que trago no início do texto! A função do perfeccionismo é frequentemente associada à obtenção de altos padrões de desempenho e realização pessoal. Algumas características são:
O problema é quando esse padrão se torna clinicamente significativo e afeta o funcionamento do indivíduo, já que os perfeccionistas costumam ter uma visão dicotômica de sucesso ou fracasso, tendendo a valorizar mais os resultados do que o processo em si.
Isso pode permitir os altos níveis de estresse, ansiedade e insatisfação, além de dificuldades em manter relacionamentos saudáveis. Também é comum que enfrentem procrastinação devido ao medo de não alcançar a perfeição desejada.
Outro fato é que o perfeccionismo está associado a diversos transtornos mentais, como o Transtorno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva (TOC), o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), a Anorexia Nervosa e a Depressão. Esses transtornos podem surgir como resultado da pressão constante e da autocrítica excessiva dos perfeccionistas, bem como da dificuldade em lidar com falhas e imperfeições.
Como sempre falo, é extremamente útil desenvolver estratégias saudáveis para lidar com o perfeccionismo e uma delas é o que chamo de Escalonamento do Perfeccionismo.
É importante entender que não há como “deixar de ser perfeccionista”, ou seja, não há como eliminá-lo, afinal, é um traço de personalidade bem estabelecido por processos de aprendizagem complexos. Mas…
É possível torná-lo, digamos, mais produtivo e funcional em termos psicológicos. Primeiro passo para isso é ter em mãos uma boa formulação de caso montada, com os seguintes itens:
A partir disso, é possível construir um escalonamento de comportamentos perfeccionistas (modelo na imagem abaixo) com base nas prioridades e importâncias! ]Veja bem, o objetivo não é “deixar de ser perfeccionista”, mas sim alocar comportamentos para onde realmente importa, em termos de vida valorosa e funcional (financeiramente, amorosamente, etc).
No caso do exemplo abaixo temos 3 níveis, as atividades que o paciente pode manter um padrão elevado (p. ex., interação com a esposa), atividades de médio padrão (p. ex., sites para somente reparar) e atividades baixo padrão (p. ex., responder prontamente mesmo não sabendo do assunto).
O mais importante nesse exercício é o paciente desenvolver seu próprio escalonamento, assim como, aplicá-lo no dia a dia. Nós, psicoterapeutas, auxiliamos a entender e resolver os problemas para manter o escalonamento, se as atividades estão equilibradas, manutenção da motivação, observação das consequências, etc.
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Uma ressalva importante é que no tratamento do perfeccionismo precisamos cuidar o excesso de padronização e protocolos, afinal, isso é justamente o que estamos tentando mudar. Uma condução do tratamento muito rígida, pode reforçar comportamentos perfeccionistas.
Outras abordagens eficazes podem complementar essa intervenção, como:
Reconhecer e desafiar pensamentos distorcidos: identificar pensamentos negativos e distorcidos relacionados à perfeição e substituí-los por pensamentos mais realistas e construtivos.
Estabelecer metas realistas: definir metas alcançáveis e que levem em consideração os limites pessoais, evitando expectativas irreais e desproporcionais.
Praticar a autorregulação emocional: aprender técnicas de gerenciamento do estresse e da ansiedade, como a prática regular de exercícios físicos, meditação etc.
Cultivar a aceitação e a autocompaixão: aprender a valorizar o esforço e o progresso pessoal, em vez de apenas focar nos resultados. Aprender a ser gentil consigo mesmo diante de falhas e reconhecer que a imperfeição faz parte da condição humana.
Em conclusão, embora o perfeccionismo possa ter benefícios em termos de motivação e realização, é essencial reconhecer os potenciais impactos negativos na saúde mental e no funcionamento diário. Ao adotar estratégias de manejo adequadas, é possível buscar um equilíbrio saudável entre a busca pela excelência e a aceitação de si, promovendo uma vida mais plena e satisfatória.
Egan, S. J., Wade, T. D., Shafran, R. & Antony, M. M. (2014). Cognitive-Behavioral Treatment of Perfectionism. The Guilford Press.
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Eu acho MUITO útil e explicativo os desenhos que você faz para explicar os conteúdos! Obrigada!