Julio Gonçalves

A ideia de “lutar ou fugir” ignora a beleza do que o cérebro realmente faz

Conteúdo escrito por Karen Pereira

INTRODUÇÃO

Ao avançar no conhecimento, à luz de novos estudos, pesquisas e tecnologias, os cientistas têm descoberto cada vez mais sobre as maravilhas que o cérebro é capaz de fazer, entendendo mais sobre os circuitos neurais e suas funções. Lisa Feldman Barrett, professora de psicologia na Northeastern University, publicou um artigo na Scientific American com evidências recentes descobertas em seu laboratório e em outros estudos, sugerindo que o cérebro faz muito mais do que reagir a ameaças lutando ou fugindo, e que sua principal função é operar através de previsão, reduzindo a incerteza em um mundo em constante mudança

Lisa ainda ressalta que a ideia de “lutar ou fugir” ignora a beleza do que o cérebro realmente faz.

UM CONTO DE PLATÃO E A IDEIA DE LUTA OU FUGA

A busca por conhecimento sempre esteve presente na história da humanidade e, mesmo antes das postulações científicas que temos hoje, já havia especulações sobre a psique humana. Platão, em sua obra Fedro, apresenta um diálogo sobre a natureza da alma, que seria composta por um cocheiro humano e dois cavalos alados, sendo um cavalo claro, nobre e obediente, e outro escuro, de raça ruim e desobediente, cabendo ao cocheiro guiar as rédeas dos cavalos. 

Em outras palavras, o cocheiro seria nosso lado racional, o cavalo claro a parte irascível (ou impetuosa), e o cavalo escuro, a parte concupiscível (ou apetitiva).

A partir desse conto sobre moralidade da Grécia Antiga e de uma noção popular ultrapassada e equivocada sobre a evolução do cérebro e suas funções, criou-se a ideia de “cérebro trino”. 

Basicamente, essa teoria acreditava que o cérebro dos humanos teria evoluído do cérebro de répteis, incluindo uma região chamada de substância cinzenta periaquedutal (PAG), que supostamente conteria circuitos neurais responsáveis por evitar ameaças, procurar comida e competir por parceiros. 

O cérebro de alguns mamíferos teria ainda desenvolvido mais uma camada, responsável pelas emoções e nomeada sistema límbico. Mamíferos humanos, supostamente, desenvolveram uma terceira camada superior, responsável pelo raciocínio, em uma área chamada neocórtex, que se esforça para manter a racionalidade e a emoção sob controle.

EVIDÊNCIAS ATUALIZADAS

  • A começar, cérebros de mamíferos não evoluíram dos répteis. Apenas répteis possuem “cérebros reptilianos”. O esclarecimento desse equívoco pode ser encontrado no artigo escrito por neurobiólogos, Your Brain Is Not an Onion With a Tiny Reptile Inside, que traz atualizações para psicólogos acerca do modelo atual sobre a evolução do sistema nervoso e fornece exemplos de como essa visão imprecisa pode estar impedindo o progresso na psicologia.
  • Avanços em genética molecular mostram que os blocos de construção biológicos são os mesmos em todos os mamíferos. A diferença entre as espécies se dá pelo momento do desenvolvimento cerebral.
  • O uso de ressonância magnética funcional (fMRI) observou que mudanças na atividade do PAG ocorrem em tarefas mundanas e não ameaçadoras, sugerindo que a PAG regula e coordena o coração, pulmões e outros sistemas a partir do sistema límbico e neocórtex em todos os momentos, porém, em momentos de ameaça, fica mais ativo. Isso indica que ansiolíticos controlam a ansiedade por atuarem em circuitos de regulação corporal.
  • Estudos em camundongos mostram que, diante de uma ameaça, os ratos não apresentam apenas comportamentos de luta ou fuga, mas também comportamentos de exploração a fim de reduzir a incerteza em seu ambiente imediato.
  • Ao longo dos últimos 20 anos, estudos vêm demonstrando que o cérebro não funciona apenas identificando um estímulo e respondendo a ele. A melhor evidência disponível atualmente sugere que o cérebro prevê antecipadamente como agir e o que vivenciar no momento seguinte, com base em suas experiências passadas. Sendo assim, a função do cérebro é prever com antecedência a probabilidade do que vai acontecer. Esse processo chama-se aprendizado.

 

ESTRESSE

O estresse é resultado do cérebro antecipando a necessidade de gastar energia e se preparando adequadamente para as situações do dia a dia. O cérebro trabalha 24 horas por dia: ao acordarmos, tomarmos café e durante todos os afazeres do cotidiano, inclusive enquanto estamos dormindo.

Além dos custos metabólicos das necessidades básicas como comer, evitar ameaças e acasalar, há o custo metabólico de aprender na incerteza, ou seja, o cérebro gasta energia para aprimorar suas previsões e ser mais eficiente em situações semelhantes no futuro. Existe também o custo metabólico sustentado, que ocorre caso não haja aprendizado e se permaneça na incerteza. Quando o cérebro tenta aprender na incerteza por um tempo prolongado o suficiente, começa a liberar substâncias químicas que aumentam o nível de excitação e agitação, podendo resultar em ansiedade.

INCERTEZA

A incerteza é uma condição inerente à vida, e sua condição metabólica é muito cara. Em situações de incerteza, por meio de atividades neuronais e outras funções cerebrais, o cérebro cria previsões com vários planos de ação para que ele e o resto do corpo possam responder e operar de forma metabolicamente eficiente.

Apesar de a incerteza ser normal, a vida moderna, com as mídias sociais nos bombardeando 24 horas com notícias sobre crises climáticas e econômicas, caos político, incêndios, alagamentos, pandemias, falta de segurança pública e dificuldades pessoais, pode causar muita incerteza, gerando uma carga metabólica desgastante, exaustiva e angustiante, causando perturbação, desgaste e sofrimento.

Por outro lado, é possível gerenciar o custo da incerteza de maneira saudável e adaptativa. Usá-la ao lado da curiosidade e da busca por novidade pode fazer com que você “brinque de cientista”, procurando informações de experiências positivas, como conhecer novas pessoas e/ou lugares, experimentar novos alimentos, aprender novas habilidades, assistir a um filme novo, aprender um novo hobby e o que mais se permitir.

CONCLUSÃO

“Seu cérebro não é uma cebola com um pequeno réptil dentro”. Novos estudos sugerem que as conexões anatômicas do PAG têm como função a regulação do corpo, e não apenas reagir a ameaças lutando ou fugindo. O PAG funciona o tempo todo, porém, diante de uma ameaça, ele trabalha mais. Prever o futuro em um mundo incerto e em constante mudança significa que você está fazendo algo realmente difícil. Somente lutar ou fugir é uma ideia preditiva e simplista diante das maravilhas que o cérebro é realmente capaz de fazer.

Barrett, L. F. (2024, August 8). Simplistic “Fight or Flight” Idea Undervalues the Brain’s Predictive Powers. Retrieved from Scientific American website:https://www.scientificamerican.com/article/simplistic-fight-or-flight-idea-undervalues-the-brains-predictive-powers/

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