Julio Gonçalves

Flexibilidade na Fidelidade em Psicoterapia

Conteúdo escrito por Júlio Gonçalves

A Prática Baseada em Evidências em Psicologia é um processo de tomada de decisão que exige um equilíbrio entre a adesão a protocolos rigorosos e a flexibilidade necessária para atender às necessidades idiossincráticas de cada paciente. 

Embora a estruturação de tratamentos seja importante, é preciso reconhecer que a diversidade de casos e a complexidade individual muitas vezes fogem dos limites dos protocolos estabelecidos. 

Este equilíbrio não implica em uma simples adaptação técnica, mas sim em um processo clínico contínuo, onde o terapeuta utiliza os princípios dos protocolos como guia, ao mesmo tempo que ajusta o tratamento às peculiaridades de cada paciente. 

Isso é relevante em contextos onde os pacientes podem apresentar múltiplas comorbidades, resistência ao tratamento ou onde as diretrizes padrão simplesmente não se aplicam. 

É preciso ficar claro que a flexibilidade na fidelidade não só amplia o alcance dos protocolos, mas também fortalece a relação terapêutica, promovendo um cuidado mais centrado no paciente.

A literatura sustenta que tratamentos com suporte empírico devem ser implementados de maneira que respeitem os princípios fundamentais dos protocolos, ao mesmo tempo que permitem ajustes contextuais baseados nas características individuais do paciente. 

Alguns exemplos de “flexibilidade na fidelidade” são:

  • Paciente não alfabetizado: Em protocolos que exigem leitura de materiais de psicoeducação, o terapeuta pode fornecer o conteúdo verbalmente, por áudio ou vídeo, adaptando o material para garantir que o paciente compreenda as informações.
  • Cultura e linguagem: Para pacientes cuja língua materna difere da usada no protocolo, o terapeuta pode flexibilizar adaptando os termos técnicos para o idioma do paciente ou usar analogias culturais relevantes.
  • Déficits cognitivos: Quando um protocolo envolve exercícios de autorreflexão ou uso de diários escritos, pacientes com déficits cognitivos podem receber suporte verbal do terapeuta para trabalhar nos mesmos objetivos, com adaptações nos formatos de resposta.
  • Idosos com baixa visão: Protocolos que exigem leituras ou preenchimento de questionários podem ser adaptados com o uso de fontes maiores, ou ferramentas tecnológicas que convertem texto em áudio.
  • Intervenções em grupo para pacientes ansiosos: Um protocolo de TCC em grupo pode ser flexibilizado permitindo que pacientes mais ansiosos participem de sessões iniciais individualizadas, antes de se integrarem ao grupo completo.
  • Esquizofrenia com alta paranoia: Quando o paciente apresenta resistência ao uso de ferramentas tecnológicas (como vídeos ou aplicativos) por paranoia, o terapeuta pode adaptar a intervenção usando meios mais tradicionais, como desenhos ou esquemas feitos à mão.
  • Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade: Em protocolos que exigem longas sessões de concentração (como mindfulness), o terapeuta pode reduzir o tempo de prática em uma única sessão e dividir a prática em blocos menores, distribuídos ao longo do dia.
  • Tratamento em crianças: Um componente central da TCC é a reestruturação cognitiva, que pode ser implementada de diversas formas, dependendo da faixa etária, nível de desenvolvimento e aspectos culturais do paciente. Em crianças, técnicas lúdicas, como personificar os pensamentos ansiosos, podem tornar o processo mais acessível e eficaz.
  • Adaptação para pacientes com traumas graves: Em casos de TEPT, se a exposição gradual aos traumas gerar resistência ou desconforto excessivo, o terapeuta pode flexibilizar o ritmo e a intensidade da exposição, introduzindo técnicas de relaxamento antes de avançar para etapas mais desafiadoras.
  • Pacientes com dificuldades de memória: Em protocolos que exigem o uso de técnicas de repetição, como o treinamento em habilidades sociais, o terapeuta pode fornecer lembretes visuais ou registros escritos para apoiar a memória e o engajamento do paciente.
  • Adaptação para pacientes adolescentes: Em intervenções de controle de impulsos, como o treinamento em habilidades de regulação emocional, o terapeuta pode flexibilizar a linguagem e o conteúdo das sessões para torná-los mais atraentes e relevantes para adolescentes, utilizando exemplos da vida cotidiana ou cultura pop.
  • Pacientes em depressão severa: Em protocolos que envolvem tarefas comportamentais fora das sessões, como a ativação comportamental, o terapeuta pode flexibilizar as exigências iniciais, permitindo que o paciente inicie com tarefas muito simples e aumente gradualmente o nível de complexidade.
  • Transtorno de pânico: Em protocolos que exigem exposições situacionais (como em lugares públicos), o terapeuta pode flexibilizar o ambiente da exposição, permitindo que o paciente escolha ambientes inicialmente com menor densidade de pessoas e aumente gradualmente para contextos mais desafiadores.
  • Terapia para casais: Em intervenções de terapia de casal, o terapeuta pode flexibilizar a estrutura da sessão, permitindo sessões individuais temporárias com cada parceiro para trabalhar em questões específicas, sem abandonar a fidelidade ao tratamento relacional.
  • Intervenção com pacientes que têm dificuldades emocionais ao abordar o passado: Quando o protocolo exige que o paciente relate eventos passados difíceis, como em terapias de processamento de trauma, o terapeuta pode permitir que o paciente escreva suas experiências em vez de verbalizá-las diretamente, como uma forma inicial de flexibilização.

LIMITAÇÕES DOS PROTOCOLOS

Não podemos esquecer que a própria aplicação do protocolo clínico já é desafiadora e apresentam várias limitações.

  • Pacientes com múltiplos problemas ou transtornos: Muitas vezes, os protocolos não contemplam a complexidade dos casos, deixando lacunas importantes na abordagem de pacientes com comorbidades.
  • Apoio de equipes: A eficácia dos protocolos pode depender de um suporte multidisciplinar, que nem sempre está disponível, comprometendo a implementação ideal do tratamento.
  • Decisões não referenciadas: Em situações de urgência, o terapeuta pode precisar tomar decisões rápidas, sem a possibilidade de consulta a protocolos (imagina abrir um livro no meio do atendimento para saber o que fazer?!), forçando a aplicação de intervenções criativas e intuitivas.
  • Problemas sem protocolos: Certas condições clínicas ainda não possuem diretrizes claras (por exemplo, transtornos de personalidade), o que exige que o terapeuta adapte ou crie intervenções baseadas em princípios teóricos mais amplos.
  • Não adesão ao protocolo pelo paciente: A resistência do paciente ou sua incapacidade de seguir os procedimentos propostos pode comprometer a eficácia do tratamento, demandando ajustes contínuos.
  • Variedade de protocolos: A abundância de protocolos disponíveis pode ser avassaladora, e muitos deles são baseados em amostras e contextos específicos, limitando sua aplicabilidade em diferentes populações.

Esses desafios, em vez de desestimular o uso de protocolos, devem encorajar uma pesquisa e o desenvolvimento de diretrizes mais flexíveis e inclusivas, que considerem as particularidades dos pacientes. Dessa forma, a psicologia se fortalece como uma ciência que, ao mesmo tempo, é rigorosa e adaptável.

PROPOSTAS COMPLEMENTARES

Para enfrentar as limitações dos protocolos, algumas propostas complementares têm sido desenvolvidas, ampliando as possibilidades de intervenção clínica:

 

  • Avaliação Funcional: Através da análise dos excessos ou déficits comportamentais, busca-se entender os comportamentos mais problemáticos do paciente, para além dos sinais e sintomas, e facilitar as mudanças necessárias. No entanto, a escolha do modelo de análise funcional ainda carece de consenso na comunidade científica.
  • Integração dos Modelos de Terceira Onda: A utilização dos protocolos mais eficazes de cada abordagem terapêutica, como ACT (Terapia de Aceitação e Compromisso) e Terapia Dialética Comportamental (DBT), pode enriquecer a prática. Contudo, ainda não existe um modelo validado que integre essas abordagens de maneira unificada.
  • Abordagem Transdiagnóstica: Essa proposta foca nos mecanismos subjacentes aos sintomas, abordando fatores transversais a diferentes transtornos. Embora seja uma abordagem promissora, há uma escassez de estudos que comprovem sua eficácia ampla.
  • Terapia Baseada em Processos: Focada nos processos subjacentes aos sintomas, essa abordagem busca ir além dos procedimentos padronizados e atender diretamente às demandas do paciente. No entanto, o conceito de “processo” ainda apresenta problemáticas e desafios quanto à generalização e aplicação prática.

As críticas à rigidez dos protocolos geralmente ignoram que eles podem ser adaptados sem perder sua base empírica. A prática da “flexibilidade na fidelidade” demonstra que é possível ajustar as intervenções conforme as necessidades individuais sem comprometer a validade científica do tratamento. Isso não só aumenta a eficácia das intervenções, mas também a relevância e o engajamento do paciente, resultando em melhores desfechos clínicos.

Essa abordagem também reforça a importância de uma avaliação contínua durante o processo terapêutico, onde o terapeuta ajusta o curso do tratamento com base nas respostas e feedback do paciente, garantindo que a intervenção seja sempre eficaz.

Por fim, deixo disponível uma aula super legal em que eu e o Prof. Daniel falamos sobre subjetividade na PBE e em um dos momentos do vídeo falamos sobre “flexibilidade na fidelidade”.

Gonçalves, J. (2023). Estabelecimento de Objetivos, Mensuração de Resultados e Monitoramento do Progresso [arquivo de vídeo]. Aula 7 Curso Descomplicando a TCC (01h10m-01h49m). https://youtu.be/hmO-N1bw9Bw

Kendall, P. C., & Beidas, R. S. (2007). Smoothing the trail for dissemination of evidence-based practices for youth: Flexibility within fidelity. Professional Psychology: Research and Practice, 38(1), 13–20. https://doi.org/10.1037/0735-7028.38.1.13

Kendall, P. C., & Frank, H. E. (2018). Implementing evidence-based treatment protocols: Flexibility within fidelity. Clinical Psychology: Science and Practice, 25(4), e12271. https://doi.org/10.1111/cpsp.12271

Tryon, G., Birch, S. e Verkuilen, J. (2018). Meta-analyses of the relation of goal consensus and collaboration to psychotherapy outcome. Psychotherapy , 55, 372–383.https://doi.org/10.1037/pst0000170

 

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