Julio Gonçalves

Uma memória minha (Júlio), recente e real: num sábado, sentado no escritório, café do lado e montando os slides de uma aula de psicopatologia. Na página 1 do slide, coloquei o título da aula, meu nome… No momento que começo digitar minha titulação “Mestre em Psicologia…”, uma onda de vergonha e desânimo toma conta de mim ao pensar que os outros professores já tem doutorado e eu, ainda, um “reles” mestre. Os pensamentos inundam minha cabeça: “errei na vida”, “era pra ter começado antes na faculdade”, “não era pra ter perdido tempo”, “nem sirvo pra estar no meio deles”. E esse elevado padrão que desenvolvi ao longo da vida (pra quase tudo que faço) tem nome e sobrenome: Perfeccionismo

O perfeccionismo pode ser definido como um traço de personalidade que envolve a busca constante pela excelência, a atenção meticulosa aos detalhes e um forte desejo de evitar erros ou imperfeições. É uma característica complexa e multidimensional, influenciada por fatores genéticos, ambientais e psicológicos.

Esse traço não é completamente ruim, como pode soar na situação que trago no início do texto! A função do perfeccionismo é frequentemente associada à obtenção de altos padrões de desempenho e realização pessoal. Algumas características são:

 

  • Motivação para a Excelência: O perfeccionismo pode impulsionar uma busca constante pela excelência e o desejo de alcançar altos padrões de desempenho. Indivíduos perfeccionistas podem ser motivados a aprimorar suas habilidades e conhecimentos, investindo tempo e esforço em seu trabalho e projetos pessoais.
  • Atenção aos Detalhes: Pessoas com tendências perfeccionistas geralmente têm uma habilidade especial para detalhes e precisão. Elas podem se destacar em áreas que exigem minúcia, como design, ciências, engenharia ou pesquisa. Sua atenção aos detalhes pode resultar em resultados de alta qualidade e precisão.
  • Autodisciplina e Persistência: O perfeccionismo pode impulsionar a autodisciplina e a persistência em alcançar metas estabelecidas. Indivíduos perfeccionistas podem ter a capacidade de se manterem focados, perseverar diante de desafios e superar obstáculos para atingir seus objetivos.
  • Busca por Melhoria Contínua: O perfeccionismo pode incentivar um processo de aprendizado constante e busca por melhorias. Pessoas com esse traço de personalidade estão sempre em busca de aprimoramento pessoal e profissional, buscando feedback e oportunidades de crescimento para se tornarem cada vez melhores em suas áreas de atuação.

 

O problema é quando esse padrão se torna clinicamente significativo e afeta o funcionamento do indivíduo, já que os perfeccionistas costumam ter uma visão dicotômica de sucesso ou fracasso, tendendo a valorizar mais os resultados do que o processo em si.

Isso pode permitir os altos níveis de estresse, ansiedade e insatisfação, além de dificuldades em manter relacionamentos saudáveis. Também é comum que enfrentem procrastinação devido ao medo de não alcançar a perfeição desejada.

Outro fato é que o perfeccionismo está associado a diversos transtornos mentais, como o Transtorno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva (TOC), o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), a Anorexia Nervosa e a Depressão. Esses transtornos podem surgir como resultado da pressão constante e da autocrítica excessiva dos perfeccionistas, bem como da dificuldade em lidar com falhas e imperfeições.

Como sempre falo, é extremamente útil desenvolver estratégias saudáveis para lidar com o perfeccionismo e uma delas é o que chamo de Escalonamento do Perfeccionismo.

É importante entender que não há como “deixar de ser perfeccionista”, ou seja, não há como eliminá-lo, afinal, é um traço de personalidade bem estabelecido por processos de aprendizagem complexos. Mas…

É possível torná-lo, digamos, mais produtivo e funcional em termos psicológicos. Primeiro passo para isso é ter em mãos uma boa formulação de caso montada, com os seguintes itens: 

  • Comportamentos tidos como excessivamente perfeccionistas (p. ex., não delegar tarefas, pois acredita que ninguém mais pode fazer o trabalho com a mesma qualidade).
  • Pessoas, momentos, coisas, mais valorosas da vida dessa pessoa! Um exercício que gosto muito para isso é pedir para o paciente imaginar que perdeu tudo – sentidos, corpo, memória, família, emprego, bens – absolutamente tudo. A seguir, peço para listar o que quer de volta, em ordem de importância, e explique por que os quer de volta. Essa lista vou usar no escalonamento, posteriormente (p. ex., relacionamento amoroso que está afetado pelo trabalho).

A partir disso, é possível construir um escalonamento de comportamentos perfeccionistas (modelo na imagem abaixo) com base nas prioridades e importâncias! ]Veja bem, o objetivo não é “deixar de ser perfeccionista”, mas sim alocar comportamentos para onde realmente importa, em termos de vida valorosa e funcional (financeiramente, amorosamente, etc).

No caso do exemplo abaixo temos 3 níveis, as atividades que o paciente pode manter um padrão elevado (p. ex., interação com a esposa), atividades de médio padrão (p. ex., sites para somente reparar) e atividades baixo padrão (p. ex., responder prontamente mesmo não sabendo do assunto).

O mais importante nesse exercício é o paciente desenvolver seu próprio escalonamento, assim como, aplicá-lo no dia a dia. Nós, psicoterapeutas, auxiliamos a entender e resolver os problemas para manter o escalonamento, se as atividades estão equilibradas, manutenção da motivação, observação das consequências, etc. 

Clique na imagem para baixar em alta resolução

Uma ressalva importante é que no tratamento do perfeccionismo precisamos cuidar o excesso de padronização e protocolos, afinal, isso é justamente o que estamos tentando mudar. Uma condução do tratamento muito rígida, pode reforçar comportamentos perfeccionistas.

Outras abordagens eficazes podem complementar essa intervenção, como:

Reconhecer e desafiar pensamentos distorcidos: identificar pensamentos negativos e distorcidos relacionados à perfeição e substituí-los por pensamentos mais realistas e construtivos.

Estabelecer metas realistas: definir metas alcançáveis e que levem em consideração os limites pessoais, evitando expectativas irreais e desproporcionais.

Praticar a autorregulação emocional: aprender técnicas de gerenciamento do estresse e da ansiedade, como a prática regular de exercícios físicos, meditação etc.

Cultivar a aceitação e a autocompaixão: aprender a valorizar o esforço e o progresso pessoal, em vez de apenas focar nos resultados. Aprender a ser gentil consigo mesmo diante de falhas e reconhecer que a imperfeição faz parte da condição humana.

Em conclusão, embora o perfeccionismo possa ter benefícios em termos de motivação e realização, é essencial reconhecer os potenciais impactos negativos na saúde mental e no funcionamento diário. Ao adotar estratégias de manejo adequadas, é possível buscar um equilíbrio saudável entre a busca pela excelência e a aceitação de si, promovendo uma vida mais plena e satisfatória.

Egan, S. J., Wade, T. D., Shafran, R. & Antony, M. M. (2014). Cognitive-Behavioral Treatment of Perfectionism. The Guilford Press.

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Gabriel França
1 ano atrás

Muito bom, certamente irei utilizar 👏🏽

Isadora
7 meses atrás

Eu acho MUITO útil e explicativo os desenhos que você faz para explicar os conteúdos! Obrigada!

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