
Você provavelmente já ouviu falar de Homer Simpson, o icônico personagem amarelo da famosa série de animação “Os Simpsons”.
Jeito descontraído, amor por donuts e baita habilidade para se meter em encrenca, mas, por trás de sua aparência caricatural e engraçada, existe um personagem que nos permite explorar alguns aspectos psicopatológicos.
A seguir, vou tentar descrever suas características cognitivas, emocionais, fisiológicas e comportamentais, bem como os fatores que desencadeiam e mantêm seu comportamento, numa perspectiva do uso de substâncias psicoativas: a “cervejinha diária” do Homer.
Inicialmente, vamos a uma narrativa introdutória para auxiliar o raciocínio clínico:
Homer Simpson, residente da animada cidade de Springfield, é um trabalhador na Usina Nuclear local. Seu amor por donuts é inegável, e seu apetite insaciável é uma fonte constante de piadas e situações cômicas. No entanto, por trás dessa paixão aparentemente inocente, começam a surgir comportamentos preocupantes.
Nos últimos tempos, familiares, amigos e colegas de trabalho têm notado mudanças no comportamento de Homer. Ele parece mais distraído, tem dificuldade em se concentrar e frequentemente esquece compromissos importantes. Sua família nota suas alterações de humor frequentes, oscilando entre momentos de irritabilidade e tristeza. Além disso, sua fadiga constante e alterações no apetite e padrão de sono têm levantado preocupações.
O uso de substâncias surge como um fator significativo nessa história. Homer parece recorrer a álcool e talvez até mesmo a drogas ilícitas para lidar com suas dificuldades e enfrentar o estresse do dia a dia.
Como sempre digo, a Formulação de Caso (FC) é a ferramenta de base para entendermos como seu funcionamento atual afeta sua vida na totalidade.
A principal parte da FC é o funcionamento atual do Homer, que podemos hipotetizar assim:
- Cognitivas: dificuldade de concentração, problemas de memória, etc.
- Emocionais: alterações de humor frequente, irritabilidade, ansiedade e início de depressão.
- Fisiológicas: diminuição do apetite, mudanças no padrão de sono, fadiga constante.
- Comportamentais: consumo diário de álcool e, às vezes, outras drogas, redução do desempenho no trabalho, isolamento social.
- Fatores Precipitantes: estresse no trabalho, problemas conjugais, conflitos familiares.
- Fatores Manutenção: uso de substâncias como mecanismo de enfrentamento, influência de amigos ou colegas que também usam substâncias, falta de habilidades de enfrentamento saudáveis.
- Fatores de Proteção: suporte da família e amigos, acesso a serviços de saúde mental, participação em grupos de apoio.
Funcionamento atual organizado, agora é preciso definir as demandas com base na teoria escolhida, nesse caso, a Terapia Cognitivo Comportamental.
Vale frisar que aqui poderia ser outro modelo, como Análise do Comportamento, Terapia Comportamental Dialética, Terapia de Aceitação e Compromisso, etc. Todos modelos (todos!) tem a Formulação de Caso como base de investigação e organização do tratamento.
- Crenças Nucleares e Pressupostos: “O uso de substâncias é a única maneira de lidar com o estresse e problemas da vida”, “Eu não posso me divertir sem usar substâncias”.
- Hipótese Diagnóstica: Homer pode estar enfrentando um transtorno do uso de substâncias, possivelmente relacionado ao álcool e drogas ilícitas, com desenvolvimento de comorbidades como a depressão.
- Demandas/Problemas: déficits nos relacionamentos familiares, necessidade de tratamento para abuso de substâncias, baixo desempenho no trabalho.
Um aspecto super relevante na FC negligenciado pela maioria dos psicoterapeutas: as causas e predisponentes no desenvolvimento do paciente!
- Genéticos: História familiar de dependência de substâncias
- História Médica: poucos problemas médicos significativos além de um histórico de lesões relacionadas a acidentes de trabalho.
- Personalidade: personalidade extrovertida, tendência a agir impulsivamente.
- Eventos Parentais: relacionamento conturbado com o pai na infância, influência negativa do pai, que também era usuário de substâncias.
- Eventos Sociais: pressão social no ambiente de trabalho para participar de atividades relacionadas a substâncias, falta de apoio social positivo.
- Modelo Cultural: aceitação social do consumo de álcool e drogas em certos contextos.
- Principais Valores de Vida: prazer imediato, aproveitar a vida.
Por fim, a parte que eu acho mais chatinha e na maioria das vezes complexa: definição de metas psicoterápicas.
Aqui é que todo raciocínio clínico tem que fazer sentido, pois as intervenções devem priorizar os problemas que causam/mantêm o sofrimento em maior intensidade e, no caso do Homer, possibilita maior risco de recaída.
Lembrando que essas metas devem ser adaptadas às necessidades e circunstâncias específicas de cada indivíduo e sempre organizadas e validadas colaborativamente com o paciente!
- Metas Psicoterápicas: 1) Reduzir o uso de substâncias, com foco na manutenção do comportamento abstinente a partir da identificação e manejo dos fatores precipitantes e de manutenção. 2) Desenvolver habilidades de enfrentamento saudáveis, como regulação emocional e inserção em grupos de apoio. 3) Melhorar o funcionamento no trabalho e nos relacionamentos, com foco na reparação e construção de interações sociais e de trabalho saudáveis (potencial necessidade de troca de setor). 4) Introduzir a família no tratamento com objetivo de torná-los co-terapeutas no processo, tendo em vista os ambientes excessivos que discriminam o uso de substância. 5) Verificar a necessidade de apoio medicamentoso com intenção de reforçar os resultados alcançados na psicoterapia.
- Obstáculos ao Tratamento: negligência de sua saúde mental, resistência à mudança, influência de amigos que também usam substâncias.
- Pontos Fortes e Recursos: amor e apoio da família, motivação para melhorar sua vida, acesso a serviços de saúde.
Pronto, aí está o guia do tratamento! No caso do Homer, há muito o que fazer no nível de intervenção, como: psicoeducação do modelo que vai ser trabalhado, como o modelo entende o uso de substâncias, manejo emocional e da abstinência, reconstrução de relacionamentos interpessoais saudáveis, reestruturação do estilo de vida, construção de uma rede de apoio, etc.
Mas isso é outra história, ou melhor, outro post.
Nicoletti, E. A., Donadon, M. F. & Portela, C. (2022). Guia prático de Formulação de Caso em Terapia Cognitivo Comportamental. Porto Alegre: Sinopsys.

Júlio Gonçalves
Psicólogo e Supervisor
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