Ciberbullying como Experiência Traumática

Escrito por Júlio Gonçalves

A compreensão do bullying — e especialmente do ciberbullying — vem passando por uma profunda transformação nas últimas décadas. Não mais visto apenas como um “rito de passagem” na infância e adolescência, o bullying tem sido enquadrado como uma experiência potencialmente traumática, com consequências que rivalizam com outros Eventos Adversos da Infância (ACEs, em inglês). Nesse contexto, um número crescente de estudos propõe que o ciberbullying seja entendido como uma forma de trauma com efeitos duradouros sobre o bem-estar psicológico, social e físico de crianças e adolescentes.

 

Desenvolvimento: O impacto psicológico do ciberbullying

O bullying tradicional, já reconhecido como fator de risco para depressão, ansiedade, dificuldades escolares e suicídio, agora divide espaço com sua versão digital — o ciberbullying — como um dos principais gatilhos de sofrimento psicológico na juventude. Dados globais apontam que 32% dos estudantes já foram vítimas de bullying, e cerca de 16% dos adolescentes norte-americanos relataram ter sofrido ciberbullying no último ano. A literatura científica é clara: jovens que são alvos de agressões virtuais tendem a apresentar mais sintomas de estresse pós-traumático (PTSD), prejuízos no rendimento escolar, problemas de sono, dificuldade de concentração, baixa autoestima e comportamentos de autoagressão.

Curiosamente, os impactos negativos não diferem significativamente entre os diferentes tipos de ciberbullying. Isso significa que práticas vistas como “menos graves”, como exclusão digital ou boatos online, podem ser tão danosas quanto ameaças diretas ou violações de privacidade. O que importa, em última instância, é a experiência subjetiva da vítima e o impacto em sua sensação de segurança, pertencimento e identidade.

 

Evidências científicas do trauma

Uma das descobertas mais preocupantes é a alta prevalência de sintomas clínicos de PTSD em vítimas de ciberbullying. Estudos demonstram que mais da metade dos jovens expostos ao bullying virtual relatam sintomas compatíveis com o transtorno, como flashbacks, hipervigilância, isolamento social e crenças negativas sobre si mesmos. Pesquisas longitudinais sugerem que esses efeitos podem persistir até a vida adulta, indicando que o ciberbullying pode deixar “cicatrizes invisíveis” por muitos anos.

 

Implicações para escolas e profissionais da saúde mental

Diante dessa realidade, a atuação das escolas e dos profissionais da saúde mental deve ser repensada à luz de uma abordagem trauma-informed, ou seja, sensível aos efeitos do trauma. Isso significa:

  • Capacitação de educadores para reconhecer sinais de sofrimento emocional e compreender os efeitos do trauma no comportamento e na aprendizagem;

  • Criação de ambientes seguros física e emocionalmente, com estruturas claras, escuta ativa e validação da experiência dos alunos;

  • Implementação de planos de intervenção em crise, que incluam ações rápidas após eventos traumáticos, como bullying, perdas familiares ou tragédias coletivas;

  • Promoção de práticas de regulação emocional, como técnicas de grounding e atividades de conexão com o momento presente;

  • Reconhecimento da diversidade de experiências: o que é traumático para um aluno pode não ser para outro, e não cabe à escola hierarquizar sofrimentos.

 

Conclusão

A pesquisa evidencia que o ciberbullying não é um problema menor ou restrito ao universo digital: é uma experiência potencialmente traumática, com impacto direto sobre o desenvolvimento saudável dos jovens. Mais do que combater os agressores, é fundamental proteger e apoiar as vítimas, garantindo que tenham os recursos emocionais, sociais e institucionais para superar o trauma.

Ao tratarmos o ciberbullying com a seriedade que ele exige — e ao reconhecermos o trauma como uma lente válida e necessária — damos um passo importante rumo à construção de uma cultura escolar mais empática, justa e protetora.

Hinduja, S., & Patchin, J. W. (2023). Cyberbullying as a traumatic experience: An empirical examination of trauma symptomatology and victimization among adolescents. Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health, 17, 56. https://doi.org/10.1186/s13034-023-00588-2

 

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