Julio Gonçalves

Em 1943, o psiquiatra infantil Leo Kanner descreveu seu primeiro paciente autista, um menino de cinco anos que ele chamou de “Donald T.” 

A imagem que ele pintou foi marcante: Donald não prestava atenção às pessoas ao seu redor, ignorando completamente aqueles à sua volta quando entrava em uma sala, em busca de objetos, de preferência aqueles que poderiam ser girados. Essa descrição inicial estabeleceu um estereótipo persistente, retratando pessoas autistas como essencialmente solitárias, ilhas isoladas que ignoram até mesmo seus próprios pais.

Esse estereótipo de autistas como indivíduos solitários perdura até hoje. Vemos isso no personagem geek constrangedor de Sheldon Cooper em “The Big Bang Theory” e nas descrições do empresário Elon Musk, que afirmou estar no espectro autista no programa “Saturday Night Live”, como alguém “carente” de empatia. 

Até mesmo Temple Grandin, uma renomada designer industrial e a primeira adulta a “sair do armário” como autista nos anos 1980, foi retratada como alguém com pouco ou nenhum interesse em amizade e intimidade, como descrito pelo neurologista Oliver Sacks em seu ensaio “Um Antropólogo em Marte”. Grandin foi retratada como “perdida” ao ler a história de Romeu e Julieta, os amantes trágicos de Shakespeare, pois “nunca sabia o que eles estavam fazendo”.

No entanto, pesquisas recentes estão desafiando esse estereótipo, revelando que muitas pessoas autistas anseiam por conexões humanas e comunidade tanto quanto seus pares neurotípicos. 

As dificuldades que enfrentam não se devem apenas à sua neurologia, mas também à forma como as pessoas não autistas respondem (ou deixam de responder) a elas. Surpreendentemente, a intimidade revela-se uma rua de mão dupla. 

A capacidade prejudicada de muitos neurotípicos de compreender com precisão os estados emocionais das pessoas autistas, denominada por Damian Milton, um pesquisador autista da Universidade de Kent, como o “problema de dupla empatia”, contribui para muitos fracassos na reciprocidade que há muito tempo são atribuídos exclusivamente às “limitações” autistas.

Um estudo recente da Universidade de Rutgers, liderado por Annabelle Mournet e colegas, concluiu que as pessoas autistas podem estar ainda mais motivadas a buscar amizades e comunidade do que as não autistas.

 Esses desejos são frequentemente frustrados por concepções errôneas generalizadas sobre o autismo, especialmente a suposição de que as pessoas no espectro não estão interessadas em buscar conforto e apoio na companhia de outros. “Não se pode presumir que adultos autistas tenham menos conexões sociais – ou menos desejo de tê-las”, escreveu Mournet na revista Spectrum. “Nosso campo deve trabalhar para desmantelar essas noções prejudiciais e imprecisas”. 

Desmontar essas noções falsas é urgente, observa Mournet, porque adultos autistas estão em alto risco de suicídio, e ter uma rede de conexões de apoio protege contra ideação suicida.

A tendência dos neurotípicos em estigmatizar o comportamento autista como estranho e afastador também dificulta a formação de relacionamentos. Esse processo ocorre automaticamente, mesmo nos primeiros segundos de interação, como observa Noah Sasson, professor de psicologia da Universidade de Texas em Dallas, cujo trabalho é profundamente informado pelas percepções de colegas autistas como Monique Botha. 

Ao realizar um estudo das primeiras impressões dos neurotípicos sobre pessoas autistas (conhecidas na psicologia como “julgamentos rápidos”), Sasson e seus colegas determinaram que reações negativas ao comportamento atípico de adultos autistas, como linguagem corporal, expressões faciais, tom de voz e frequência de contato visual, levam os neurotípicos a serem menos propensos a buscar interações adicionais. 

Esses julgamentos rápidos prejudicam de maneira abrangente os esforços dos adultos autistas para encontrar emprego, construir redes de apoio e navegar no cenário social de maneiras que levem a vidas felizes, seguras e bem-sucedidas.

As mulheres autistas, muitas vezes negligenciadas na pesquisa, enfrentam desafios distintos na construção de amizades. Pesquisadores como Felicity Sedgewick e Elizabeth Pellicano descobriram que, ao lutar para interpretar sinais sociais não ditos e enfrentar formas sutis de bullying por parte de seus pares neurotípicos, as mulheres autistas são especialmente vulneráveis à exploração em relacionamentos românticos e sexuais

Quando surgem dificuldades em um relacionamento, tendem a assumir toda a culpa pelo problema e fazer o possível para resolvê-lo ou acreditar que a amizade não pode ser salva e se afastar do relacionamento. Essas descobertas destacam a necessidade urgente de treinamento de segurança pessoal específico e personalizado para mulheres autistas – e, por extensão, para meninas autistas – garantindo que elas possam fazer uma transição segura para a vida adulta e relacionamentos positivos.

Embora os estudos sobre o papel dos neurotípicos na contribuição para os desafios enfrentados por pessoas autistas na criação de redes sociais de apoio ainda sejam pequenos e preliminares, o fato de que eles estejam ocorrendo é um dos resultados positivos do aumento da participação de pessoas autistas na definição da agenda de pesquisa sobre autismo e no combate a suposições capacitistas nos projetos de estudo

Esses estudos também acompanham a experiência de vida das pessoas autistas de maneira mais próxima do que teorias unilaterais sobre deficiências sociais e “cegueira mental”.

O primeiro paciente autista de Kanner, cujo nome real era Donald Triplett, não permaneceu uma ilha isolada. Ele cresceu em uma pequena cidade no Mississippi, onde foi aceito como era. Quando Triplett faleceu em junho, após uma vida feliz trabalhando em um banco, jogando golfe e viajando pelo mundo, seu obituário no New York Times observou: “Ele tinha muitos amigos. Alguns deles, um grupo de homens, encontravam-se com o Sr. Triplett todas as manhãs em frente à prefeitura de Forest para tomar café”. 

A história de Donald Triplett é um lembrete poderoso de que a necessidade de conexão humana transcende o rótulo do espectro autista, e todos nós, independentemente da neurologia, anseiamos por comunidade e amizade.

Silberman, S. (2023). Autism, Human Connection and the ‘Double Empathy’ Problem. Scientific Americanhttps://www.scientificamerican.com/article/autism-human-connection-and-the-double-empathy-problem/

Mournet, A., Bal, V., Selby, E., & Kleiman, E. (2023). Assessment of multiple facets of social connection among autistic and non-autistic adults: Development of the Connections With Others Scales. https://doi.org/10.31219/osf.io/d6t5k

Milton, D. (2012) On the Ontological Status of Autism: the ‘Double Empathy Problem’. Disability and Society, 27(6), 883-887. https://kar.kent.ac.uk/62639/

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