Julio Gonçalves

O que é TEPT complexo e como ele se relaciona com o transtorno de personalidade borderline?

Conteúdo escrito por Karen Pereira

CONJUNÇÕES E CONFUSÕES: TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO COMPLEXO (TEPT-C) E TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE (TPB)

É muito comum que a comorbidade seja a regra na clínica, e o diagnóstico incorreto não colabora com o tratamento. Hoje vamos conversar sobre as sobreposições entre TEPT-C e TPB, que apresentam desafios clínicos semelhantes.

TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO COMPLEXO (TEPT-C)

Incorporado ao CID-11, mas não no DSM-5-TR, foi definido como um diagnóstico separado do TEPT, porém com semelhança nos sintomas.

A CID-11 define o TEPT como um diagnóstico que envolve exposição a um evento traumático e inclui três grupos de sintomas:

1. Novas experiências do evento traumático: Pensamentos e imagens intrusivas, sonhos recorrentes, angústia psicológica durante situações que se assemelham ao evento, sentir ou agir como se o estresse traumático fosse recorrente, incluindo delírios, alucinações, flashbacks dissociativos.

2. Entorpecimento afetivo/evasão do estímulo associado ao evento traumático: Evitação dos pensamentos, sentimentos e situações associadas ao estressor; amnésia psicogênica; interesse significativamente menor por atividades; sensação de distanciamento e estranheza em relação aos outros; afeto restrito/entorpecimento emocional; visão estreita do futuro.

3. Reatividade neurovegetativa: Distúrbios do sono, irritabilidade ou explosões de raiva, concentração prejudicada, hipervigilância, resposta de sobressalto exagerada, reações físicas a estímulos que lembram o evento traumático.

Para o diagnóstico de TEPT-C, além dos sintomas listados acima, também deve-se apresentar sintomas que refletem desregulações afetivas e interpessoais:

Exposição prolongada a evento social e/ou interpessoal traumático relacionado a cativeiro, estar preso, abandono ou despersonalização de si mesmo.

Alguns fatores de risco do TEPT-C incluem exposição traumática prolongada (meses ou anos) à vitimização crônica ou perda total do controle de outra pessoa, como em casos de violência doméstica ou abuso físico e sexual de crianças. Assim, o TEPT-C envolve interações complexas e recíprocas entre múltiplos sistemas biopsicossociais. Os indivíduos com TEPT-C apresentam maior risco de distúrbios de personalidade e risco significativo de revitimização.

TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE (TPB)

De acordo com o DSM-5-TR, apresentam um padrão generalizado de instabilidade nos relacionamentos interpessoais e afetos, autoconceito instável, impulsividade, comportamento de risco e/ou hostilidade e labilidade emocional. Apresentam dificuldades características na identidade, autodireção, empatia e/ou intimidade, com traços desadaptativos específicos no domínio da afetividade negativa, antagonismo e/ou desinibição, e geralmente lutam contra um medo intenso de abandono. 

Apesar de o diagnóstico não exigir exposição a trauma, estudos apontam que de 30% a 90% das pessoas com TPB atendem aos critérios para transtorno baseado em trauma ou relatam histórico de trauma.

SINTOMAS ÚNICOS E SOBREPOSTOS

É muito comum que o diagnóstico de pessoas com TEPT-C pareça se sobrepor ao TPB. A diferença parece se apresentar no autoconceito e na interação dos relacionamentos. Enquanto no TEPT-C o autoconceito se apresenta negativo e pode se manifestar com evitação e desconexão, no TPB o autoconceito é instável, resultando em relacionamentos intensos e voláteis. Além disso, é frequente que o TEPT crônico leve a modificações de personalidade clinicamente semelhantes ao TPB.

A imagem abaixo ilustra os sintomas:

ESTUDO DE CASOS

Vejamos os casos de dois clientes, um com TEPT-C e o outro com TPB, onde poderemos analisar as sobreposições em termos de gerenciamento de tratamento.

CASO DE PACIENTE COM TEPT-C

“Sr. Shawn” é um homem de 46 anos com diagnóstico de TEPT-C (anteriormente diagnosticado erroneamente como transtorno bipolar II), transtorno de ansiedade generalizada (TAG), transtorno do pânico, depressão e transtorno do uso de metanfetamina em remissão. Ele passou por traumas significativos durante a infância, no exército e na vida adulta, todos os quais causaram flashbacks e pesadelos frequentes. Ele foi abusado sexualmente por sua madrasta quando adolescente e mais tarde lutou contra um casamento emocionalmente abusivo e a subsequente batalha pela custódia após o divórcio. Ele sofria de insônia, provavelmente por causa de pesadelos relacionados ao TEPT e à ansiedade, o que inicialmente levou a um diagnóstico incorreto de transtorno bipolar II. Sua ansiedade parecia se originar de sua tendência a catastrofizar estressores (principalmente relacionados a enxaquecas hemiplégicas recorrentes) ou da exacerbação do TEPT. Ele apresentava ataques de pânico graves com dificuldade em interromper as imagens recorrentes do trauma e revivência das experiências traumáticas. Ele tinha boa percepção e conseguia controlar a ansiedade de base usando habilidades de enfrentamento, como exercícios de respiração profunda, distração e mentalização; no entanto, ele tinha dificuldade em controlar ataques de pânico graves caracterizados por raiva intensa e volatilidade. Isso resultou em isolamento e socialização limitada na tentativa de evitar eventos desencadeadores, bem como na autodepreciação constante devido à sua incapacidade de controlar a labilidade do humor.

Foram prescritos a ele diferentes antipsicóticos (lurasidona, olanzapina, risperidona, quetiapina) e outros estabilizadores de humor (lamotrigina, lítio, ácido valproico, carbamazepina) para atingir a labilidade do humor, bem como inibidores seletivos de recaptação de serotonina/inibidores de recaptação de serotonina-norepinefrina (ISRS/IRSN), prazosina e ciproeptadina, principalmente para sintomas de TEPT. Também foram prescritos medicamentos conforme a necessidade para ansiedade, incluindo clonidina, gabapentina, hidroxizina e clonazepam. Ele era particularmente sensível a mudanças de medicação, então a maioria — se não todos — os testes de medicação resultaram em piora dos sintomas ou efeitos adversos graves.

Mesmo antes de tentar medicamentos diferentes, ele estava aberto a abordagens alternativas de tratamento, incluindo modificações no estilo de vida e psicoterapia. Ele participava de psicoterapia semanal (agora mensal) com um terapeuta que também era veterano. Seu terapeuta usou várias abordagens terapêuticas, incluindo terapia de processamento cognitivo, terapia cognitivo-comportamental, terapia de exposição, experiência somática e terapia comportamental dialética. Embora os medicamentos parecessem fornecer benefícios limitados para seu TEPT e ansiedade, sua participação na terapia permitiu que ele construísse a confiança para se envolver mais com sua comunidade da igreja e encontrar sua identidade por meio de sua fé. Por meio da igreja, ele pôde conhecer sua atual esposa e encontrou saídas emocionais, como tocar violão para seu grupo de música da igreja. Além disso, seu neurologista prescreveu proclorperazina em baixa dosagem para suas enxaquecas, o que também foi útil conforme necessário para os ataques de pânico.

CASO DE PACIENTE COM TPB

“Ms. Carter” é uma mulher de 43 anos com histórico psiquiátrico significativo para TPB, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) combinado do tipo desatento e hiperativo e TAG. Ela foi diagnosticada com TPB pela primeira vez enquanto estava no exército por meio de testes psicológicos (Million Clinical Multiaxial Inventory-IV e Minnesota Multiphasic Personality Inventory). Ela também passou por traumas na infância após ser molestada repetidamente por seu tio e estresse severo no início da vida adulta após seu pai morrer tragicamente em um incêndio em sua casa. Grande parte de sua ansiedade recente decorre de estressores financeiros (ou seja, incapacidade de manter um emprego estável e pagar contas todo mês), dificuldades na transição da vida militar para a vida civil e relacionamentos tumultuados com seus pais e atual marido.

Ela lutou para encontrar seu autoconceito e papel na sociedade depois de deixar o exército, o que contribuiu muito para sua ansiedade. Ela tendia a se isolar devido ao medo de abandono porque teve vários casamentos anteriores turbulentos que terminaram em divórcio e um relacionamento intermitente com seu pai, mas ela era muito dependente de seu marido, pois ele era um de seus únicos relacionamentos consistentes. Sua ansiedade tendia a se manifestar como tensão e flutuações de humor entre irritabilidade intensa, choro e hostilidade, geralmente direcionadas ao marido. Sua ansiedade também era frequentemente acompanhada de sintomas físicos (coração acelerado, palmas das mãos suadas, desconforto abdominal e piora da dor crônica). Ela frequentemente acordava durante a noite sentindo uma sensação de desconforto e tinha dificuldade em voltar a dormir devido à sua incapacidade de acalmar sua mente. Embora tenha sido historicamente difícil determinar se sua ansiedade está ligada ao TAG versus TDAH não tratado, é provável que haja sobreposição na sintomatologia.

Inicialmente, ela era resistente a psicoterapia mais intensiva, o que ela atribuiu ao medo de “recomeçar” com um novo provedor e preocupações sobre a aliança paciente-terapeuta. Ela queria principalmente controlar seus sintomas com medicamentos e teve tentativas malsucedidas de vários ISRS/IRSN com e sem aumento de estabilizadores de humor (notavelmente, lamotrigina e ácido valproico) e aripiprazol. Ela também tentou diferentes estimulantes para seu TDAH, o que pareceu apenas exacerbar ainda mais sua ansiedade. Por fim, depois de vários anos trabalhando com seu psiquiatra e vendo benefícios limitados com testes de medicamentos, ela concordou em iniciar psicoterapia individual em conjunto com medicamentos. Ela começou com terapia comportamental dialética quinzenal, depois fez a transição para terapia de dessensibilização e reprocessamento do movimento ocular (em vista de sua história significativa de trauma sexual na infância). Ela também participou de terapia cognitivo-comportamental para insônia e melhorou sua higiene do sono. Além disso, ela foi testada com quetiapina em baixa dosagem para humor/ansiedade e atomoxetina para TDAH. Ela começou a ver pequenas, mas significativas melhorias com esse regime.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRATAMENTO

Apesar dos diagnósticos dos clientes serem diferentes, podemos identificar algumas semelhanças entre os casos. Em ambos os casos, os clientes iniciaram o tratamento apenas utilizando fármacos receitados pelo psiquiatra, como estabilizadores de humor, para ansiedade e depressão comórbidas ao TEPT e TPB, que também desempenham papel na impulsividade e labilidade do humor, característicos dos diagnósticos. Devido à resistência aos medicamentos, iniciaram processo psicoterápico.

Em ambos os casos, o raciocínio clínico para o tratamento em psicoterapia também pode seguir linhas semelhantes. Como ambos apresentam traumas com presença de instabilidade emocional (ansiedade desencadeada pelo histórico do trauma vivenciado) e baixa autoeficácia, comuns em ambos os diagnósticos, possivelmente as abordagens mais benéficas seriam aquelas que visam a desregulação emocional e o processamento do trauma. 

Atualmente, a terapia comportamental dialética é o tratamento mais empiricamente sustentado que se demonstrou eficaz para TPB e para clientes com TEPT-C, no que diz respeito ao tratamento da labilidade e regulação emocional. Para o processamento do trauma, as terapias mais indicadas tanto para TPB como para TEPT-C são a terapia de processamento cognitivo, dessensibilização e reprocessamento do movimento ocular e terapia de exposição prolongada. Para melhor gerenciamento da ansiedade e melhorar a socialização, podem ser incluídas a terapia de aceitação e compromisso com foco em atenção plena e mudanças cognitivo-comportamentais.

Mudanças comportamentais no estilo de vida desses clientes também são fundamentais no que diz respeito à manutenção do TPB e TEPT-C. É importante desenvolver estratégias de regulação emocional, abordar estressores psicossociais, além de entender como outros diagnósticos médicos podem exacerbar sintomas de ansiedade e tratá-las adequadamente, como no caso do “Sr. Shawn”, com enxaquecas hemiplégicas, ouvindo música, e a “Sra. Carter”, com TDAH e dor crônica, fazendo higiene do sono.

CONCLUSÃO

É fácil cair no erro de que tratamentos medicamentosos são mais eficazes, mas no que se trata de saúde mental, eles apresentam um resultado modesto e o tratamento psicoterápico é considerado de primeira linha. Para clientes com TPB, TEPT-C ou alguma combinação deles, o tratamento deve ser considerado multifacetado e sobreposto. A utilização de fármacos pode trazer algum benefício, porém, o olhar holístico do psicoterapeuta, abordando mudanças comportamentais e os sintomas utilizando as abordagens baseadas em evidências, é mais eficaz.

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